bacalhau d’assinatura • chef Vítor Matos: “Venho de um tempo em que era preciso batalhar muito e sonhar muito com isto”

Antiqvvm (Porto), Vidago Palace e Pedras Salgadas (Chaves), Blind, no Hotel Palace Porto, Oculto, no The Lince Santa Clara, unidade de alojamento instalada no antigo Mosteiro de Santa Clara, em Vila do Conde, Hool, no Hotel da Oliveira, em Guimarães, 16 Legoas e Schistó, no Torel Quinta da Vacaria, em Peso da Régua, no Douro, e 2Monkeys e Black Pavilion, no Torel Palace Hotel, em Lisboa. Eis os restaurantes onde Vítor Matos tem vindo a conquistar o estômago e a alma de apreciadores da boa cozinha. 

Mas não foi sobre as distinções que fomos conversar com o chef nascido na aldeia de Jorjais, em Vila Real, que emigrou para a Suíça na infância, regressando, mais tarde, para espalhar a criatividade em bastidores da restauração. Falámos sobre a capacidade de reunir as pessoas certas, sobretudo no contexto atual, os desafios na cozinha, mas também do gosto pela comida simples e cheia de sabor, mas também com sofisticação, que quer implementar no Black Pavilion, objeto de uma mudança maior.

Apesar de pouco falar sobre a paixão pela pintura, aptidão associada à estética que transpõe para cada pratos, bem como acerca da produção de vinhos com a assinatura, essa dupla paixão perdura. Leia a entrevista.

Como é que, num espaço de 14 anos, o chef Vítor Matos reúne equipas de cozinha com aptidão para conquistarem e somarem estrelas Michelin? A começar pelo Antiqvvm. No Antiqvvm, a primeira estrela foi atribuída oito meses depois de estar aberto. Aqui [no 2Monkeys] também foi num espaço de seis ou sete meses. Também foi muito rápido! A primeira estrela é de 2011, com a Casa da Calçada [no restaurante Largo do Paço].

De que forma organiza a agenda com os chefs que seleciona para cada espaço de restauração? Neste momento, sou eu que faço a gestão dos meus dias. No início de cada mês, organizo a minha agenda. Quanto aos chefs, até agora foi fácil. Tudo o que eu quiser abrir a partir de agora, vai ser difícil. Quando escolho alguém para trabalhar comigo, há uma relação, há afetos, há conhecimento, há trabalho desenvolvido noutros sítios. O único chef que não tinha trabalhado comigo é o chef daqui, o Guilherme [Spalk] e o Francisco [Quintas]. Estou a ter uma boa experiência com o Francisco, a equipa está bem oleada.

Os restaurantes perfeitos são aqueles que são abertos, onde se faz cozinha séria, com produto e que as pessoas sentem que estão a fazer comida. Há espaço para fazermos uma cozinha verdadeira e cada vez mais vai ser assim. Temos de sentir que é comida”

Qual é o grau de exigência que estabelece com quem trabalha? Já não falo em exigência. O querer já não é tão importante. Acima de tudo, quero que as pessoas se sintam em casa, que se sintam que fazem parte de um projeto, que tragam algo positivo. Todos os projetos que estou a abrir, como o do Douro, sou eu, mas só lá estou ao sábado, porque o chef que meti lá ainda não tem tempo suficiente para lhe dizer ‘mereces estar ao meu lado’. Quando chegar esse tempo, assinamos os dois. Quero que ele tenha o devido protagonismo, para ter reconhecimento. Somos seres humanos. Todos nós esperamos lá chegar. No fundo, há o ego. Temos de ser mais liberais e deixar as pessoas andarem para a frente, fazerem asneiras… É necessário dar espaço às pessoas. Claro que não somos crianças, mas para progredirmos, às vezes, fazemos asneiras. Os restaurantes perfeitos são aqueles que são abertos, onde se faz cozinha séria, com produto e que as pessoas sentem que estão a fazer comida. Há espaço para fazermos uma cozinha verdadeira e cada vez mais vai ser assim. Temos de sentir que é comida. Pode ser cozinha francesa ou de outra parte do mundo? Pode. O Guilherme e eu viajamos uma vez por ano. Este ano foi a Tailândia, daí as influências tailandesas no menu. Para o ano, vamos a outro país da América do Sul, daí que venhamos a ter influências da América do Sul no menu. O espaço lá de baixo [2Monkeys] é rock’n’roll, é viagem, é influências do mundo inteiro. Não há ADN da cozinha portuguesa. 

Sobre o Black Pavilion. Sobre este espaço aqui, que sofreu grandes mudanças e vai sofrer ainda mais mudanças com o chef novo, a identidade deste espaço vai ser uma cozinha de simples compreensão, de sabores portugueses, mas não regionalistas; aromas e sabores portugueses, comida bem feita, um bom bife, o bacalhau vai continuar na carta… quem está hospedado no hotel, merece comer comida portuguesa. Mas depois há um grande problema, que é a falta de mão de obra, daí a cozinha mais simples, com menos apontamentos. Isto não é um espaço de fine dining, de produto fresco, bem confecionado, com delicadeza.

O que faz para encontrar as pessoas certas, tendo em conta o atual panorama nacional em relação à falta de recursos humanos? Só escolho o chef e o sub-chef, porque são os meus braços direitos. A partir daí, têm liberdade total para escolherem os resto da equipa deles. Não me meto nas escolhas deles. É o que faço em todos os espaços. No entanto, no caso do Oculto, só escolhi o Hugo e deixei-o criar a equipa dele. Cada chef tem de ter confiança em quem escolhe, porque são eles que vão trabalhar juntos. Como não vou estar sempre presente, tenho de deixar o chef a criar a própria equipa. O difícil, neste momento, é encontrar pessoas que trabalharam comigo e em quem eu confio mesmo! Mesmo assim, os primeiros menus têm muito a minha influência, à excepção do espaço lá em baixo, o 2Monkeys by Vítor Matos e Guilherme Spalk, em que assinamos os dois o menu. No Blind também. No Antiqvvm, como o Tiago [Dias] está comigo há três anos, talvez este ano passe para o lugar da frente. Sem a equipa não se faz nada! O factor emocional e o bem-estar familiar são muito importantes, influenciam muito o resultado na cozinha, porque trata-se de um trabalho de consistência. Não vamos fazer melhor porque está ali um inspector da Michelin, pois todos os clientes são importantes. Porém, é sempre um risco, porque podemos perder uma estrela. Hoje em dia, nada é garantido. Por isso, continuo a acreditar que, para perder uma estrela, tem de acontecer alguma coisa muito grave.

De volta ao Black Pavilion, qual é o objetivo do chef Vítor Matos no que concerne a mudanças neste restaurante? Sabores e aromas mais atuais. Não tem a ver com os sabores de infância, porque já muita coisa mudou na cozinha. Não preciso de voltar à minha infância – comida do pote, sopa de feijão, entulho, serrabulho, hortaliças, porco uma vez por ano, toucinho gordo na frigideira com broa de milho, não havia peixe… Éramos pobres, mas tão felizes. Corríamos descalços, andavamos no meio das silvas, apanhavamos cobras… Não tínhamos medo de nada! Eram outros tempos. O que nos falta para perdermos esse registo é termos perdido a necessidade. Quando o ser humano perde a necessidade de caçar, perde tudo. Agora, queremos ter mais. Voltando a este restaurante, quero trazer simplicidade, sabor, frescura com influências da cozinha portuguesa, mas sem cair no regionalismo.

Como se consegue criar numa época em que a criatividade na gastronomia parece ter atingido o limite? Depende da criatividade. A minha depende do meu estado de espírito. Venho de um tempo em que era preciso batalhar muito e sonhar muito com isto. Os meus pratos eram sonhados durante a noite. Apontava todos os passos num caderno que tinha na mesinha de cabeceira. A criatividade resume-se a outra coisa: é preciso sair de Portugal, para ver o que os outros fazem, para podermos fazer o que é nosso. Ou seja, devemos ter influências não só nossas, mas também do mundo inteiro. Há cada vez mais a vontade de tentar escolher o produto que serve para harmonizar com outro produto. O que faço nos meus espaços é selecionar a proteína principal. Quando cheguei ao Douro, desenhei um conceito em que a ideia é trabalhar com produto dali – truta do rio Corgo, lúcio-perca do Douro, borrego de Resende, fazemos o cozido num snack, usamos o nosso azeite. Tudo o que é hortaliça, usamos a que temos na nossa estufa, na Quinta da Gargoça, que é nossa. Fica em Sabrosa, num micro-clima, entre duas vinhas. O único produto que temos ali, mas que não é do Douro, é de uma pessoa que o faz no Porto, é a enguia fumada. Não usamos tecnologia nova. Quando queremos um molho mais espessa, usamos o amido de milho. É uma cozinha muito terra a terra. Explicamos os pratos todos.

O que tem a dizer sobre o seu caminho e percurso que tem sido feito na cozinha em Portugal, sem esquecer o seu lado artístico? Gosto muito de arte. Gosto de pintura. Nasci no sítio errado. A paixão pela cozinha vem da minha mãe, da minha família, da falta de comida. Porque tinha falta de roupa, comprava muita roupa, ou de sapatilhas, e só comprava sapatilhas, ou de comida, e comia muitos chocolates. 

Mas foi para a Suíça. Mas, depois, sentia falta de estar à lareira, com os meus avós, e de comer aquela comidinha, aquela sopa. Memórias!

O bacalhau para além das 1001 receitas

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© Fotografia: João Pedro Rato

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