Douro, a simbiose do homem com a natureza / Douro TGV

Da terra áspera e bela brotam azeites e vinhos, amêndoas e ervas aromáticas que, à mesa, são servidos por mãos sábias

Nos últimos dias de maio, a Região Vinhateira do Alto Douro foi palco de dois importantes eventos, o II Douro TGV e o VII Festival do Vinho do Douro Superior. Além de provas de vinho e de azeite, ambos integraram conversas sobre o passado e o futuro deste território ornamentado de paisagens naturais e moldado pela dureza do trabalho agrícola e da força humana.

O Alto Douro Vinhateiro situa-se no nordeste de Portugal, na bacia hidrográfica do rio Douro. Ocupa mais de 250.000 hectares, 45 dos quais estão ocupados por vinha e 25 classificados pela UNESCO, em 14 de Dezembro de 2001, como Património da Humanidade, na categoria de paisagem cultural.

Rodeada pelas serras do Marão e Montemuro, a região vinhateira, rica em microclimas em consequência da sua acidentada orografia, está dividida em três sub-regiões: Baixo Corgo, Cima Corgo e Douro Superior. No portefólio vínico constam brancos, tintos, rosados, espumantes, licorosos e aguardentes de vinho com especificidades próprias.

No quadro das vendas, os vinhos tranquilos (não fortificados) têm vindo a crescer, ao contrário das de Vinho do Porto, que têm vindo a diminuir na última década. Segundo dados do Instituto do Vinho do Douro e Porto (IVDP), em 2005, os DOC Douro representavam 16% das vendas de Vinho do Porto. Em 2017, representam já mais de 50%.

Além do vinho a produção de azeite, amêndoa e castanha são atividades económicas igualmente importantes na região.

Douro TGV: enoturismo, azeite e vinho

O Douro TGV, – a sigla que nos remete para comboios de alta velocidade mas, neste caso, significa “turismo, gastronomia e vinho”, enquanto os comboios continuam a deambular ao ritmo lento da corrente do rio – decorreu no Palácio do antigo Governo Civil de Vila Real, nos dias 24, 25 e 26 de maio.

Focando-nos na gastronomia, o azeite, outro grande produto agrícola do Douro, provavelmente o mais importante logo a seguir ao vinho, foi tema de debate. Em palco estiveram Edgardo Pacheco, jornalista, crítico de vinhos e gastronomia, grande conhecedor de azeites e autor do guia “Os 100 Melhores Azeites de Portugal”; Francisco Pavão, da Associação de Olivicultores de Trás-os-Montes e Alto Douro, produtor e especialista, um dos maiores experts de azeite em Portugal; e do Brasil, Patrícia Galasini, provadora profissional de azeites,  membro da Confraria do Azeite, docente e assessora nesta área, além de responsável pelos eventos brasileiros “ExpoAzeite” e “Encontro Internacional de Olivicultura”.

Francisco Pavão, Patrícia Galasini e Edgardo Pacheco

Edgardo Pacheco começou por traçar o estado pós produção, definindo-o como “uma desgraça”. Ou seja, enquanto na área da produção houve grandes avanços, mais reconhecidos no estrangeiro do que dentro de portas, por cá ainda “há um grande desprezo pelo azeite na restauração e pouca sensibilidade por parte do consumidor português”. Apesar de ser um ingrediente presente em todas as mesas lusitanas, nem sempre é preservado nas melhores condições. Muitas vezes está arrumado junto de fontes de calor, o que deteriora o produto. Perante este facto, Edgardo Pacheco reforça: “o azeite é o parente pobre da gastronomia portuguesa”.

Em jeito de recomendação, o jornalista aponta a restauração como aquele que deveria ser o principal pilar da promoção deste produto milenar. Para o efeito, é necessário começar pelo ensino, “mas nenhuma escola de gastronomia tem um módulo de azeite no currículum e os alunos nem sequer sabem provar nem usar o azeite”, afirma. “Era importante desenvolver uma cultura de conhecimento do azeite e, para isso, muito também poderiam contribuir os jornalistas que tanto escrevem e falam de restaurantes e vinhos, e pouco ou nada publicam sobre o sumo extraído da azeitona, fruto da oliveira”

Francisco Pavão além de corroborar com as palavras de Edgardo Pacheco, deixou ainda duas questões para reflexão: a falta de mão-de-obra qualificada e a abordagem do azeite enquanto “commoditie”, ou seja, produto a granel, por certo sinónimo de desvalorização de um produto de excelência.

Apesar do cenário descrito por ambos os intervenientes, Portugal é um dos maiores produtores mundiais de azeite. De acordo com o panorama nacional, o país tem vindo a registar o aumento a área de olival e, por conseguinte, a exportação de azeite. Um dos principais destinos deste produto é o Brasil, o segundo maior importador do mundo e de onde nos chega Patrícia Galasini para abordar “O Azeite Português no Mundo. O caso do Brasil”.

Do azeite importado por este país sul americano, cerca de 60% é proveniente de Portugal à frente de Espanha com cerca de 20%. A representação da tradição, de preferência com uma azeitona no rótulo de uma garrafa de vidro é o que mais motiva a compra de azeite pelos brasileiros. Apesar do consumo crescente, o nosso “País Irmão” é ainda um grande mercado a explorar, uma vez que das cinco grandes regiões, só é consumido azeite nas três do sul: Centro-Oeste, Sudeste e Sul. O consumo per capita é inferior a 400 gramas, enquanto na Europa há países onde a média é superior a dez quilos por pessoa.

Seguiu-se uma pequena prova teste de dois azeites, um com defeitos e outro de qualidade, para “avaliar” os conhecimentos da plateia e a degustação de azeites de vários produtores da região, de produtos feitos à base de azeite e de um gelado gelado feito a partir do sumo da azeitona.

“Cozinhar com os azeites, ao vivo e a várias mãos”

Paulo Magalhães, Daniel Garcí­a Peinado e André Magalhães

O dia dedicado à gastronomia terminou com o jantar temático “Cozinhar com os azeites, ao vivo e a várias mãos”, que reuniu, novamente, um trio. Desta vez foi de chefes, na cozinha do restaurante Panorâmico, da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). Foram eles André Magalhães, da Taberna da Rua das Flores e da Taberna Fina (Lisboa), João Paulo Magalhães, responsável pelo enoturismo da Quinta de Ventozelo (Douro), e o espanhol, nascido em Málaga, Daniel García Peinado, membro da Academia Internacional do Azeite de Oliva Virgen Extra (AOVE) e da Selecção Espanhola da Cozinha Profissional. Antes do desfile dos seis pratos que foram servidos aos comensais, o chefe espanhol falou sobre o seu trabalho de investigação que tem como objetivo estudar o azeite virgem extra, o elemento principal dos pratos que tem vindo a criar, e chamou a atenção para os fatores que afetam a conservação do azeite.

Para o repasto os chefes criaram seis pratos diferentes e em todos eles, estava presente azeite das variedades Verdeal, Madural e Cobrançosa, as três principais da região de Trás-os-Montes. As respetivas amostras já estavam nos copos azuis em cima das mesas à espera de serem cheirados e provados.

André Magalhães deu início a jantar, recordando o tempo em que viveu em Alijó, quando nos apresentou a “torrada de pão de centeio da Padaria do Tua regada com azeite Cobrançosa ao qual juntou finas fatias de presunto de Lamego e rebentos de alho selvagem finalizadas com um toque de sal negro”.

Os segundo e terceiro momentos ficaram a cargo de Daniel Garcia Peinado, que esteve em Portugal pela primeira vez. Começou com uma ostra com azeidesa cítrica, temperada com ervas da região – trazidas por Graça Saraiva, fundadora do Ervas Finas –, emulsionadas com azeite e maçã, criando um granizado ao qual juntou um molho holandês ligado com cítricos e azeite Madural, ao qual se seguiu corvina com sucos marimol. “Confitada em azeite a baixa temperatura, a corvina esteve acompanhada por puré de azeitona, cuscuz com manjericão, queijo e puré de brócolos. O caldo feito a partir da cabeça do pescado foi emulsionado com azeite Cobrançosa”, explica o chefe de Málaga.

De volta à mesa, o “taberneiro” André Magalhães apresenta um divinal bacalhau confitado em azeite a baixa temperatura (38 a 40 graus) acompanhado com grelos, que poderiam ser temperados ao gosto de cada um com os muitos azeites da região espalhados pelas mesas.

O final estava reservado para o chefe transmontano João Paulo Magalhães, primo de André Magalhães: salada com Graça, queijo terrincho e conventual lapão de amêndoa e vinagre de Porto (apesar dos passos dados no início deste ano, ainda não é permitida a designação vinagre de Vinho do Porto). Uma verdadeira salada transmontana, obviamente regada com azeite, já que todos os produtos são oriundos da região: as flores de Graça Saraiva; o queijo terrincho é produzido com leite de ovelha da raça churra da terra quente (a parte sul de Trás-os-Montes); e o pudim de amêndoa conventual feito pela Casa Lapão de Vila Real há mais um século.

Antes da sobremesa houve ainda tempo para um teste: iogurte natural feito por Daniel García Peinado com amendoim, banana, mirtilo, gelatina de mel e azeite verdeal. Sem palavras.

A manhã seguinte começou com uma visita ao moderno lagar da Agrifiba, Casa Afonso Borges, instalado no Regia Douro Park. Paralelamente no Palácio do Governo Civil, falou-se de alterações climáticas e da regulamentação da rega, debate que teve Guilherme Marques Martins, da Science Agro Bordeaux, como moderador. À tarde decorreu a “Mostra de Vinhos e Sabores”, na qual produtores de várias regiões deram a conhecer e provar os seus néctares, aos quais se juntam produtos gastronómicos da região.

O Douro TGV é organizado pelo Regia Douro Park que, com iniciativas como esta, pretende munir os atuais e futuros players, cujas actividades abordem as áreas de turismo, gastronomia e vinho, mas em especial aos agentes e às gentes da região, como sejam os alunos e docentes da UTAD, da Escola de Hotelaria e Turismo do Douro – Lamego e de outras instituições de ensino, cujos alunos são os futuros embaixadores da região. •

De Vila Real para Vila Nova de Foz Côa: Festival do Vinho do Douro Superior (leia aqui)

+ Douro TGV

© Fotografia: João Pedro Rato

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