Património gastronómico, a doçaria conventual e tradicional serve de testemunho de partilha e de passagem de geração em geração, transcritos através da mais doce sabedoria.
Eliseu Henriques confecciona o Bolo de Ançã desde os 12 anos
Iniciemos este roteiro pelo bolo de Ançã feito por Eliseu Henriques. O boleiro mais jovem de Ançã, freguesia do concelho de Cantanhede, aprendeu, aos 12 anos, este ofício com a avó, Maria de Jesus, “a mais antiga boleira de Ançã”.
Já dentro do forno, são retirados, um a um, para fazer as cristas identitárias deste produto regional
Hoje, com 25 anos, Eliseu Henriques dedica-se inteiramente à feitura deste produto regional. Farinha, fermento, açúcar, ovos e raspas de limão são os ingredientes deste bolo doce, tradicionalmente associado à Páscoa e aos casamentos, desta feita, aquando da entrega do arroz doce. “Ninguém sabe há quanto tempo é feito”, assegura o nosso anfitrião, mas as memórias de infância de muitos conferem a longevidade desta deliciosa relíquia, no que à receita diz respeito.
Estão prontos a comer!
Depois de juntar os ingredientes, a massa é dividida em partes iguais, com cerca de 600 gramas cada uma, as quais ficam a levedar durante quatro horas. Assim que se aproxima a hora, Eliseu Henriques acende a lenha de pinho no forno da cozinha da avó. Quando a temperatura ideal à cozedura dos bolos é atingida, retiram-se as brasas e o fundo é aspergido com água. Os bolos são pincelados com ovos previamente batidos e vão a cozer. Passados dez minutos, os bolos de Ançã são retirados um a um, para fazer as cristas identitárias deste produto regional, e são novamente dispostos no interior do forno, onde permanecem por mais 20 minutos até ficarem prontos.
Farinha de trigo muito fina e água são os ingredientes da massa estaladiça do Pastel de Tentúgal
A cerca de outros 20 minutos dali, começa o bailado. Isabel Rama, pasteleira, há duas décadas, na pastelaria Afonso, em Tentúgal, estica, pelas pontas, suavemente a massa, feita apenas a partir de farinha de trigo muito fina e água, com as pausas necessárias e a rapidez que se exige. Tudo acontece sobre os lençóis brancos estendidos, idealmente pela manhã, em colchões, a ocupar uma sala enorme. O processo é, todo ele, artesanal, e a espessura da massa deve ficar pelos 0,05 milímetros, para ficar estaladiça.
Bastam uns minutos para estender a massa, graças ao saber-fazer das pasteleiras desta casa
Se começa a rasgar, é posto um pano branco por cima. À arte conferida pelas mãos, a temperatura amena e a humidade relativamente alta são os factores ideais para a feitura desta massa que se destina aos famosos pastéis de Tentúgal. Depois de cortada em quadrados mais finos do que uma simples folha de papel, este são levados para a sala onde são recheados.
A pena de galinha serve para espalhar a manteiga na massa
A feitura deste doce conventual criado pelas irmãs Carmelitas, no Convento de Nossa Senhora do Carmo, datado do século XVI, prossegue com o seu recheio à base de gemas de ovo e açúcar. A manteiga é pincelada nas pontas da folha de massa fina, com o auxílio de uma pena de galinha, para, depois, facilitar a “colagem” após a dobra, que vai dar o formato rectangular ao pastel.
Este doce conventual foicriado pelas irmãs do Carmelo de Tentúgal
“Cada pasteleira tem a sua pena”, confirma Olga Cavaleiro, uma das guardiãs do Pastel de Tentúgal, produto de Indicação Geográfica Protegida, cuja receita foi-lhe passada pela mãe, Natália Cavaleiro, nesta casa que é uma herança familiar, onde as pasteleiras Maria do Carmo Guinot e Lilia Costa executam a mesma tarefa. A somar às queijadas de Tentúgal, outra das delícias desta terra e que tem o queijo fresco do Rabaçal como ingrediente principal.
Criado pelas irmãs Carmelitas, no Convento de Nossa Senhora do Carmo com o Convento de São Francisco como pano de fundo, o terraço do restaurante O Cordel é palco de uma mostra de doces conventuais. É de provar a leveza dos papos de anjo e a doçura q.b. do pudim das Clarissas, que conquistou outros cozinheiros do país. O bolo de noz é de truz e os suspiros acicatam o apetite dos mais gulosos. Cada receita é seguida com rigor pelo chef Paulo Queirós, embaixador da doçaria conventual no âmbito de Coimbra – Capital Europeia da Gastronomia 2021/2022.
Pudim das Clarissas é uma das delícias d’ O Cordel
Nascido no Porto e com uma infância e adolescência transmontana, deixou-se conquistar, em adulto, pela “cidade dos estudantes”, cujo receituário quer ver perpetuado. “Faltam os pastéis de Santa Clara e outros doces específicos, como o manjar branco, o pão-de-ló ou o arroz doce.” Como tão bem diz, “Coimbra transborda-se! É uma região, não uma cidade.”
O Bolo de Noz de Paulo Queirós
Muito há para conhecer e provar, pois tratam-se de receitas que vão para além da doçaria, seja das repúblicas, tão populares no meio estudantil, seja das festas, bem como das tabernas e das tascas das ruas da cidade. Das festas, Paulo Queirós refere a galinha tostada com arroz de carqueja. As bacalhaoadas e os pratos à base de pato ou de galinha, “carnes da salgadeira que os estudantes traziam de casa.”
Os folhadinhos de Queijo do Rabaçal é mais uma prova da importância atribuída aos produtos regionais, n’ O Cordel
De volta ao alinhamento da doçaria, é de acrescentar os folhadinhos de Queijo do Rabaçal, para comer com compota de tomate biológico da Serra da Lousã, pretexto maior para se falar da enigmática Serra da Lousã. Esta extensão montanhosa faz parte da Cordilheira Central de Portugal Continental e do Sistema Montejunto-Estrela. Faustosa em fauna e flora, é encantadora graças aos seus recantos naturais e “morada” de 12 das 27 Aldeias do Xisto. Sem mais delongas, a visita tem um propósito: conhecer o Mel da Lousã DOP.
Ana Paula Sançana, técnica responsável da Lousãmel, e António Carvalho, presidente desta cooperativa
A produção é da responsabilidade da Lousãmel – Cooperativa Agrícola de Apicultores da Lousã e Concelhos Limítrofes, fundada em 1988 e com mais de 500 associados inscritos. “Os nossos associados são pequenos agricultores”, informa o presidente, António Carvalho de 72 anos. “Estão distribuídos pela Serra da Lousã, Oliveira do Hospital, Trancoso, mas a nossa bandeira é o Mel da Lousã DOP.”
O tom escuro deste mel deve-se à predominância de urze na Serra da Lousã
“É um mel à base de urze com algumas presença de castanheiro, de sabor intenso, forte, e cor escura”, explica Ana Paula Sançana, Engenheira Agropecuária, de 42 anos, e técnica responsável da Lousãmel, sublinhando, ainda, a presença do aroma a bosque. “Para ser considerado Mel da Lousã DOP, tem de ser certificado por um órgão exterior, a pela SATIVA, que garante o cumprimento de todos os pressupostos do caderno de especificações”, entre os quais consta a área geográfica, que abrange dez concelhos – sete do distrito de Coimbra e três do distrito de Leiria. “Aqui, na Serra da Lousã, devemos ter na ordem de seis sete mil colmeias” e cada uma tem cerca de 60.000 abelhas, número que tende a diminuir, no Inverno.
As abelhas obreiras e os alvéolos são visíveis nesta colmeia
Quanto à produção do mel, esta ocorre entre finais de Março e finais de Julho, “mas tem variado muito, por causa das mudanças climáticas”, acrescenta a técnica responsável da Lousãmel, sem descurar do problema relacionado com a forte presença da vespa asiática, prejudicial para a produção de mel e a vida das abelhas, deixando um alerta agridoce: “os apicultores acabam por ser os sentinelas da natureza, porque cuidam das abelhas, que, por sua vez, promovem o equilíbrio da biodiversidade”, que urge preservar.