Dispersa um pouco por todo o país, esta casta tinta está a ganhar, nas duas regiões vínicas, um maior reconhecimento por parte de produtores e consumidores.
A Castelão é uma casta autóctone de Portugal originária do sul, onde, ainda hoje, mantém a maior preponderância. Também é conhecida por João de Santarém, nomeadamente, no Tejo, e por Periquita, na região da Península de Setúbal, graças ao nome de uma quinta da José Maria da Fonseca que se chama Cova da Periquita e lhe deu fama através dos seus vinhos. Com quase dez mil hectares de vinha espalhada pelo país, é a quinta variedade de uva mais plantada e a quarta no que toca a tintos.
Na Península de Setúbal, dos mais de nove mil hectares de vinhas plantadas, acima de 40 por cento são ocupados pela Castelão, dos quais 26 hectares são de vinhas com 90 anos ou mais. Por sua vez, na região do Tejo, esta casta representa aproximadamente 13 por cento dos cerca de 13 mil hectares totais de vinha, sendo a variedade de uva tinta mais plantada na região, com presença forte em cerca de 80 por cento dos tintos, sobretudo nos vinhos de lote.
De fácil cultivo e com produtividade elevada, a Castelão parece ser a casta no lugar certo nestas regiões. Resiste bem às doenças da vinha, mas, como nem tudo é perfeito, tem um senão: apesar de uma película relativamente grossa é sensível aos escaldões. Alguma coisa há a fazer na vinha para a proteger.
Apesar de tudo isto, não é, ou não era, comum, encontrarmos vinhos elaborados só com Castelão, sobretudo na região vitivinícola do Tejo. Em 2021, numa prova realizada pela Comissão Vitivinícola Regional do Tejo, esta entidade conseguiu reunir apenas meia dúzia de monovarietais feitos a partir da Castelão, sendo que só dois — um tinto da Quinta da Alorna e um espumante da Quinta do Casal Branco — tinham edições regulares. Os restantes eram colheitas antigas. Hoje, há uma dezena de referências.
Na Península de Setúbal existe bastante mais diversidade de “Castelões” antigos e novos. Apesar de pouco reconhecidos pela maioria dos consumidores, existem, como veremos mais à frente.
As condições morfológicas
A região da Península de Setúbal é constituida por duas áreas bastante distintas. Uma é montanhosa, com altitudes entre os 100 e os 500 metros; está delimitada pelas serras da Arrábida, da Rosca e de S. Luís, e pelos montes de Palmela, S. Francisco e Azeitão. Recortada por vales e colinas, por aqui predominam os solos argilo-calcários e o clima ameno. Representa cerca de 20 por cento da região e é o local indicado para a produção das uvas que dão origem ao vinho generoso Moscatel de Setúbal.
Os outros 80 por cento, pelo contrário, são planos e estendem-se pela vasta planície alentejana, entre o rio Sado e a costa Atlântica. Aqui os solos são fundamentalmente arenosos e as amplitudes térmicas maiores. É onde a área de vinha mais tem crescido e onde a Castelão se dá melhor.
A região Tejo é marcada pelo curso do rio que lhe dá nome. É junto a este que se encontram as extensas planícies sujeitas a inundações, responsáveis pela fertilidade da terra. São terrenos de aluvião. A norte do rio Tejo, os solos são maioritariamente argilo-calcários e ficam junto aos maciços montanhosos de Aire, Candeeiros e Montejunto. Em Tomar, na parte norte da região vitivinícola do Tejo, há uma pequena área de solos xistosos, enquanto a sul, zona com temperaturas mais elevadas, há solos arenosos e pouco férteis, e que consequentemente registam menor produtividade.
Mudam-se os tempos mudam-se os gostos
O conhecimento e os avanços tecnológicos na adega também permitem aos enólogos criarem vinhos muito diferenciados, que podem ir dos rosados até aos mais frutados ou complexos para guarda ou mesmo vinhos brancos feitos a partir de uvas tintas ou blancs de noirs, passando por tintos mais leves e frescos. Há para todos os paladares e os consumidores passam a ter mais opções de escolha para além dos clássicos com mais extração, carregados de cor, cheios de fruta preta e teor alcoólico elevado. Dizem que é a tendência, mas a multiplicidade de opções é sempre bem-vinda, porque há momentos para uns e para outros.
Para comprovar essa diversidade, fizemos duas provas: uma em Azeitão, na Casa das Tortas de Azeitão, na região da Península de Setúbal, e outra em Tomar, no Casal das Freiras (produtor que visitamos em 2018), na região vitivinícola do Tejo. Para um melhor enquadramento, ambos os momentos de prova foram antecedidos por uma visita às vinhas.
A prova dos nove (ou mais)
Castelão da Península de Setúbal
A prova de “Castelões”, conduzida por três elementos da equipa da Sociedade Vinícola de Palmela – Filipe Cardoso, diretor-geral e enólogo, Luís Simões, diretor-geral adjunto, e José Caninhas, diretor de produção e enólogo a prova de Castelões da Península de Setúbal – levou-nos até 2005. Foram mais de uma dúzia os vinhos numa prova que se revelou bastante didática ao mostrar uma casta em diferentes estados de evolução ao longo do tempo. O que é qualquer coisa que só uma região com este histórico pode proporcionar.
Começamos por submeter à prova quatro Castelões de 2023, como é óbvio, ainda em estágio e não engarrafados. Quatro espécimes, ainda sem identidade definida, cada um feito com uvas oriundas de diversas vinhas que variam entre os solos de transição argilo-calcários do limiar da serra aos arenosos. De vinhas jovens, vinhas com 25 anos e vinhas velhas. Vinhos que estão a estagiar em madeira e outros em ânforas argelinas. Encontrámos o Castelão no seu estado mais primário com taninos que variam entre o suave e alguma adstringência e vinhos com muita frescura.
Seguimos para aquele que será o Castelão 2021 da Trois, marca criada pelos três amigos (Filipe, José e Luís), grandes entusiastas da Castelão. O resultado deste vinho é a junção da interpretação de cada um, com uvas de vinhas da serra de Luís Simões e uvas de vinhas de areia da Quinta do Piloto. Depois de estagiar cerca de 16 meses em diferentes madeiras está atualmente numa fase intermédia de estágio em garrafa antes de ir para o mercado. Aguardemos, mas pela amostra espera-se algo poderoso.
Do que está para vir, para o que já cá está, como o Serra-Mãe Castelão 2020 (€7). Um vinho feito com uvas vindimadas em vinhas de areia, com pouco estágio em madeira, o que deixa transparecer os aromas típicos da casta. É um Castelão descomplicado e consensual, de taninos polidos pronto a beber. Por seu lado, o Serra-Mãe Reserva Castelão 2020 (€10) é um vinho mais exigente, com estrutura, fruto do estágio em barricas novas e usadas. A precisar de algum tempo em garrafa.
Viajando para outras coisas, algumas já não serão fáceis de encontrar no mercado, descobrimos o Botelheira Vinhas Velhas 2017, engarrafado em 2019. Com extração e bem encorpado, é um vinho que “cheira a Arrábida”, nas palavras de Filipe Cardoso. De volta ao Trois, desta feita ao primeiro, do ano 2015, estagiado em diversas barricas novas de carvalho francês, é um jovem com quase uma década., com aromas mentolados e taninos tensos. Estamos perante um vinho de guarda com muita pujança de fruta.
Continuando a jornada, saboreamos o Horácio Simões Reserva 2014. Menos rústico do que o anterior, chega com força e vai-se dissolvendo com suavidade, sem pressas. O Quinta do Piloto 2014, cem por cento vinificado em ânfora argelina é um clássico com taninos suaves, enquanto o Quinta do Piloto Reserva 2012, o primeiro vinho da marca, estagiou em barrica nova. Tem notas mais atléticas com timbres de couro. Do mesmo ano, o Serra-Mãe Reserva 2012 e o irmão bem mais velho, o Serra-Mãe Reserva 2005, são bons exemplos da linha condutora que marcou esta prova: a acidez bastante equilibrada.
Castelão do Tejo
Organizada pela Comissão Vitivinícola Regional do Tejo (CVR Tejo) e conduzida pelo escanção Rodolfo Tristão e pelo Diretor Geral da CVR Tejo, João Silvestre, a prova de vinhos do Tejo, teve duas mãos cheias de vinhos, dos quais sete foram lançados pela primeira vez em 2023.
Os blanc de noirs (vinhos brancos feitos a partir de uvas tintas) tiveram a honra de abrir e fechar a prova. Dois vinhos que já não são novidade. Para começar, o Contracena Blanc de Noir Colheita Selecionada Castelão 2022 (€9), um IG Tejo, da Quinta da Ribeirinha, é um vinho jovem com aromas florais, fruta e alguma doçura na boca.
Para terminar, eis o Monge Espumante Bruto branco 2015 (€18,50), DOC do Tejo, da Quinta do Casal Branco , o único espumante monocasta Castelão e o vinho mais velho da prova. Neste sentem-se notas fumadas de evolução e uma bolha bem viva, a despertar as papilas gustativas para o almoço que se seguiu. Mas antes ainda há que falar dos restantes oito vinhos: três rosados e cinco tintos.
Os três rosados são novidades e têm origens diversas – Aveiras, Alpiarça e Tomar – bem evidentes na cor, de pálida a bastante acentuada, a fazer esperar perfis também diferentes.
O Bathoreu rosé 2021, IG Tejo, da Agro-Batoréu (€6), é um vinho com frescura, fruta e gordura intensa a pedir comida; o Casa da Atela Castelão rosé 2021 (€11,50), IG Tejo da Quinta da Atela feito com Castelão de uma vinha com 73 anos. Um quarto do lote vai à madeira, o que lhe dá mais volume de boca, sendo menos frutado e mais seco. Para completar este trio, o Chícharo rosé 2022, um DOC do Tejo, da Adega Alveirão(€12), com um perfil mais clássico, para o floral e frutado.
Antecedendo os tintos propriamente ditos, mais uma novidade que resulta de uma parceria entre a família Vidal e Dirk Niepoort, o Casal das Freiras Vidal x Niepoort Castelão tinto 2022 (€15). É um belo tinto de cor aberta e pouca extração, tipo palhete, que transmite a leveza do baixo teor alcoólico que não vai além dos 11,5 por cento. Uma nota para o rótulo, alusivo à Festa dos Tabuleiros, que se realiza em julho, uma profusão de texto em cima de carregados elementos gráficos, que o tornam pouco legível e confuso a contrastar com a fluidez do vinho. Podia haver mais sintonia e menos sinfonia entre o vinho e o rótulo.
Chegados aos tintos, temos a novidade Séries Singulares Castelão tinto 2021 (€25), DOC do Tejo, da Companhia das Lezírias. Este tinto de cor rubi estagia parte em madeira e parte em barro. Tem muita fruta e taninos bem presentes.
Da Golegã chega outra novidade, o Espargal de D. Luís Reserva tinto 2021 (€13), IG Tejo, da Casa Agrícola Rebelo Lopes, um vinho com a identidade do Tejo, bem extraído e com muita fruta e taninos a pedir algo para acompanhar à mesa.
Feito com uvas de vinhas velhas plantadas em solo de calhau rolado, o Reserva das Pedras tinto 2017 (€19,90), DOC do Tejo da Quinta da Alorna, mantém o perfil clássico.
A última novidade, é de Tomar e dá-se pelo nome de Anunciada Velha tinto 2021 (€41,90), um IG Tejo da Quinta da Anunciada Velha. É um tinto com corpo, do qual se destaca a fruta vermelha e a pimenta. No rótulo apenas uma fotografia a preto e branco, e o nome em tipografia minimalista e elegante anunciam o esperado. Na linha do que este produtor já vem fazendo no Algarve com o Morgado do Quintão, onde também tem um monocasta Castelão.
Em jeito de resumo, se é que se pode fazer com tamanha diversidade, algumas das características mais comuns nos monocastas da Castelão são a cor granada, a boa estrutura, a fruta e uma acidez bastante equilibrada. Podem ser consumidos normalmente cedo, mas se estagiados em madeira, têm boa aptidão para envelhecimento. Mas como vimos, há-os para todos os gostos e momentos podendo chegar a um amplo leque de consumidores.