Madeira Terroir: A interpretação pantagruélica de terra e mar

O ambiente de festa envolto no eclético compasso das boas sonoridades em palco serviu de pano de fundo para a celebração da gastronomia que juntou chefs de Portugal, Espanha e França, no Funchal, na primeira noite da Rota das Estrelas.

Diego Guerrero, chef do restaurante madrileno DSTAge, e Luís Pestana, um dos anfitriões da noite e chef do William, do Belmond Reid’s Palace

À chegada, as bancadas dos produtos hortícolas e da fruta exibiam ainda as mil e uma cores e formas que a terra dá. Enquanto turistas e locais faziam as últimas compras do dia, houve quem não ficasse indiferente à azáfama que, a pouco e pouco, tomava conta do espaço onde o peixe é rei.

Falamos do Mercado dos Lavradores, local de culto dos produtos locais da Madeira, foi o epicentro da estreia da 8.ª edição da Rota das Estrelas, a 24 de Março, e o palco do Madeira Terroir, o jantar volante protagonizado por uma vintena de estrelas de cozinhas d’aquém e d’além mar e organizado por dois anfitriões: Benoît Sinthon, chef do Il Gallo d’Oro (2 estrelas Michelin), do The Cliff Bay, hotel do grupo madeirense Porto Bay, e Luís Pestana, chef do William (1 estrela Michelin), do Belmond Reid’s Palace, ambos no Funchal.

Henrique Sá Pessoa, que viu o seu Alma conquistar uma estrela Michelin em Novembro de 2016, o sous-chef Elmano Coelho, do William, e Benoît Sinthon, chef do Il Gallo d’Oro, do The Cliff Bay Hotel e também anfitrião do evento

Em tradução livre da terra e do mar à mesa, Benoît Sinthon, o chef francês radicado na Madeira há quase duas décadas, escolheu a truta da ilha e submeteu-a a uma cura – entre 20 a 50 minutos, consoante o tamanho –, a qual teve a companhia de uma creme de agrião com funcho picado e puré de batata, espuma de caviar de esturjão e pepino com yuzu. “É um prato de Primavera”, sublinhou, dando particular ênfase ao facto de todos os peixes e mariscos presentes na extensa “carta” do Madeira Terroir. “É tudo daqui”, ressalva, apontado para a fruta, as ervas aromáticas e as flores comestíveis, entre outros produtos que compunham o prato. “Há uma ligação forte com os produtores, por quem está nas bancadas do peixe daqui, do Mercado dos Lavradores”, a qual foi testemunhada pela representação das demais iguarias madeirenses dispersas pelo espaço reservado ao evento da noite.

A interpretação da terra e do mar pelo chef Luís Pestana

Luís Pestana entra no mesmo espírito da alta cozinha, com as ovas de espada com funcho – “representadas como caviar” –, creme de batata doce, salmão em meia cura com crosta de salsa, puré de inhame, crispies de batata doce e gel de maracujá. “O produto faz a diferença: Quando é muito bom, à partida, tem um resultado muito bom”, ou seja, o chef do William – recém-estreado no Guia Michelin de Espanha e Portugal – reforça a importância da qualidade do produto, o que “fazia todo o sentido, sendo o Madeira Terroir.

A qualidade do produto foi, do mesmo modo, abordada pelo chef do Alma (1 estrela Michelin), em Lisboa, Henrique Sá Pessoa, que salientou esse mesmo valor como sendo preponderante em qualquer cozinha, em (bom) nome do receituário português. E por falar em cozinha de Portugal, o chef lisboeta levou as gambas algarvias até à Madeira numa “interpretação das gambas ao alhinho” e “uma inspiração do Ramiro” – célebre restaurante de mariscos em Lisboa –, “com espuma de alho e malagueta”, prato que vai ficar na nova carta do Alma.

A cataplana de Noélia, que casou os sabores algarvios com os madeirenses no prato

De terras algarvias viajou a cataplana, pelas mãos de Noélia, do famoso Noélia & Jerónimo, em Tavira que, pela primeira vez faz parte do elenco da Rota das Estrelas. “Fantástico”, atira assim que lhe perguntamos como está o ambiente desta festa gastronómica que, a partir da sua pequena cozinha improvisada, casa o Algarve com a Madeira. No prato há pargo da ilha em destaque numa mescla de produtos do mar e da terra cozinhados comme il faut.

O polvo pelas mãos de Paula Peliteiro foi ao prato com a laranja

Com a bússola apontada para Norte, o Madeira Terroir brilhou, outrossim, Paula Peliteiro, levando a receita de sua mãe para a Madeira, com o polvo servido num prato quente, “porque está frio”, justificou a chef e proprietária do Sr.a Peliteiro, em Fão, uma pequena vila do concelho de Esposende. “São muitos os que procuram o Sr.a Peliteiro por causa dele”, o polvo que, na ilha, recebeu a companhia da laranja da Madeira, uma adaptação que ficou de truz!

Vítor Matos escolheu o seu prato preferido em representação do Antiqvvm

A cerca de 80 quilómetros para sul, da cidade Invicta foi Vítor Matos, o chef do Antiqvvm (1 estrela Michelin) que elegeu o Vinho da Madeira de cinco anos e feito a partir da casta Malvasia, para complementar o “prato da minha cozinha e que gosto muito. Tem foie gras, enguias fumadas, flor de sabugueiro”.

Pedro Almeida, Paulo Morais e João Santo, o chef que “põe as mãos na massa” nas cozinhas do Bistrô 4, do Porto Bay Liberdade, e do Trato32, do PortoBay Marquês

Com o peixe na lista das preferências esteve, como seria de esperar, Paulo Morais, do restaurante Rabo d’Pêxe, em Lisboa que, entre 2014 e 2017, marcou presença na Rota das Estrelas, no Funchal, “uma mais valia para nós enquanto chefs”, com o sushi e o sashimi, ao contrário do que tem vindo a acontecer no seu restaurante, que “está cada vez mais demarcado pela minha cozinha com influência asiática”, acrescenta o chef que, para muitos do universo da gastronomia, é considerado um mestre da cozinha nipónica.

Pedro Almeida, chef do Midori, do Penha Longa Resort, em Sintra que, em representação de Sergi Arola, chef do Arola e do LAB by Sergi Arola (1 estrela Michelin), seguiu o alinhamento marinho com a escolha do carapau para o seu nigiri, porque “quando pensamos na Madeira, pensamos em peixe, em mar, além de que para mim, o carapau é um dos peixes menos compreendidos e faz todo o sentido que o utilizemos”, afirmou sem rodeios.

Os espanhóis Javier Olleros, Pepe Solla e Diego Guerrero mostraram quão simples é cozinhar / © Fotografia: Patrícia Serrado

“Pediram para trabalhar um produto da Madeira e o mais interessante é o atum.” A explicação foi dada por Javier Olleros, chef do Culler de Pau (1 estrela Michelin), de portas abertas desde Abril de 2009, em Reboredo, Pontevedra, na Galiza, da vizinha Espanha, “inserido num contexto de Natureza” à semelhança da ilha anfitriã, a qual visitou pela primeira vez.

O atum foi o produto escolhido pelo chef Javier Olleros

Encantado com a variedade de produtos disponíveis para compra no Mercado dos Lavradores e pela hospitalidade, o chef natural da Suíça e filho de pais galegos, expressou o desejo de regressar à Madeira e falou um pouco sobre o conceito do seu restaurante, o qual centra-se na Natureza, na proximidade e no orgânico, a trilogia de factores que associa a novos sabores e a novas texturas e, acima de tudo, ao respeito pela tradição na cozinha – “há que preservar os métodos de confecção antigos, para preservar a consciência do valor do ‘antigamente’”.

Pepe Solla atribuiu o papel principal à ostra

A pouco mais de meia hora do Culler de Pau está o Casa Solla (1 estrela Michelin), também em Pontevedra, o restaurante que conta com a assinatura do chef galego Pepe Solla que, no Mercado dos Lavradores, se rendeu às ostras da nossa costa e à ilha que o acolheu pela primeira vez, tendo ficado “fascinado com a variedade de legumes e fruta”. Tudo boas razões para querer voltar e, porque não, à Rota das Estrelas, evento que marcou pelo “ambiente maravilhoso” e pela “relação entre os chefs”.

O lagostim assumiu a essência do prato de Diego Guerrero

Para fechar o circuito do país vizinho no Madeira Terroir, falámos com Diego Guerrero, proprietário e chef do DSTAgE (2 estrelas Michelin), aberto desde 1 de Julho de 2014 na capital espanhola. No âmbito do evento, o chef vitoriano escolheu o carabineiro para o ceviche preparado, por sua vez, em pedra de sal rosa. Veterano na idas à Madeira, Diego Guerrero confessou o quanto gosta de viajar até à ilha, onde tem feito amigos, realçando a partilha de ideias, os bons momentos passados e a hospitalidade. “Gosto muito de visitar este mercado, por causa dos produtos”, sobretudo a fruta tropical, em particular “os diversos tipos de maracujá, o que não é habitual em muito locais”.

O chef francês Olivier Barbarin sublimou a dupla pargo e atum nesta noite de festa

De Espanha para França a distância foi curta, já que bem perto de Pepe Solla estava Olivier Barbarin, chef do Château d’Audrieu, na região da Baixa-Normandia, em França, desde Março de 2009 e que, pela sexta vez, aceita o desafio de participar na Rota das Estrelas. Para o prato, o chef francês – que fez dupla com Yves Gautier, chef do hotel Casa Velha do Palheiro, no Funchal – fez um tártaro de atum e pargo, para o qual escolheu o champanhe, porque “a gastronomia é muito simples, pelo que não é preciso complicar”.

Francisco Marques, um dos escanções que aceitou o desafio de casar o vinho com os pratos dos chefs

Mesmo para quem pouco conhece sobre o imenso mundo vínico, escanções não faltaram. Ao todo foram nove os que recomendaram, explicaram e serviram os vinhos aos comensais e, ao mesmo tempo, respeitaram o seu papel, em particular, no Dia do Escanção. Falamos de João Chambel, da garrafeira Estado d’Alma, em Lisboa; Miguel Martins, do hotel Conrad, em Almancil, em terras algarvias; António Lopes, do Anantara, em Vilamoura; Francisco Marques; Sérgio Marques, do Il Gallo d’Oro; Alberto Luz, do William; Paulo Sousa e Américo Pereira, que estiveram à frente da bancada do legado de Baco da região madeirense; Nuno Jorge, da Cacao di Vine, projecto que une o chocolate ao vinho, que esteve numa bancada contígua à do Vinho da Madeira que, com um brinde terminaria a festa.

Benoît Sinthon ao lado de Noëlle Faure que, com David Faure, puseram um ponto final neste encontro enogastronómico

Ou nem por isso. Afinal, o remate da 8.ª edição da Rota das Estrelas (leia aqui sobre esta matéria) foi tomado pela dupla David e Noëlle Faure, do Aphrodite que, na companhia de sonoridades que atravessaram épocas tão distantes, como os loucos anos 1920’ ou a década de 1980’, mostraram a surpresa da noite, a sobremesa feita em azoto líquido, um de gelado de maracujá – o mesmo fruto utilizado pela chef francesa Claire Verneil, a par com a manga –, para celebrar os produtos do terroir madeirense. •

+ Rota das Estrelas
+ Belmond Reid’s Palace
© Fotografia: Henrique Seruca

Já recebe a Mutante por e-mail? Subscreva aqui .