Porque a Matéria está para além das nossas mesas

A Praia de Paimogo, na vila da Lourinhã, teve o peixe e o marisco em grande plano. Depois foi a vez da Quinta do Archino, onde o desafio foi encontrar míscaros, e da horta do Hortelão do Oeste, uma montra viva da agricultura na aldeia de Barbas. E, por fim, o Vale da Capucha, com os copos ao alto, para um brinde à Região Oeste e ao pregão do nome Portugal além fronteiras. Um trabalho da autoria de João Rodrigues, desta vez com Florent Ladeyn, a cozinhar com produtos portugueses, e João Simões, a responder ao desafio.

Dourada, carapau, carabineiros, navalheiras, amêijoas, perceves… Um (quase) infindável mar de peixe e marisco fresco disposto sob a pequena embarcação de pesca surpreendeu quem chegava ao areal da Praia do Paimogo, na Lourinhã – a primeira e única Região Demarcada de Aguardente do país. Presentes estavam também locais, como Joel, o actual proprietário da célebre Tasca do Joel, em Peniche, outrora o ponto de encontro de pescadores após um dia de faina, e João Simões, chef dos restaurantes Casta 85 e D’Ásia, ambos em Alenquer.

A pouco e pouco, à mesa, pronta para receber os apreciadores de sabores tão genuínos, era dado o início ao almoço. Primeiro com os queijos e os enchidos locais e, a pouco e pouco, com o produto minuciosamente preparado por quem detém o dom da cozinha, como João Rodrigues, chef do Feitoria (1 estrela Michelin), restaurante do Altis Belém Hotel & Spa, em Lisboa, e o mentor do projecto e dos jantares Matéria, enquanto a conversa preenchia os momentos entre pratos com marisco cozinhado a preceito.

Jael faz, entretanto, uma pausa para mostrar a maneira mais genuína, mas também mais saborosa, de como se come carapau em terras lusas: coloca-se o pão na palma da mão e o carapau por cima deste, com a outra mão, tiram-se pedaços do peixe, os quais se levam à boca. Quem não o faz, não sabe o que perde.

O projecto faz-se com o produto na sua essência

“Não estamos a fazer nada com maquilhagem. É tudo muito cru, muito autêntico”, diz João Rodrigues, referindo-se aos jantares Matéria. “O que fizemos, ontem, naquela praia é tudo muito autêntico. Não houve máscaras, não houve problemas de passar esta ou aquela imagem – é o que é, é o que todos nós gostamos. Todos nós vibrámos ao ver aquele peixe em cima de um barco, o marisco e, depois, há a simplicidade de quem o transforma, de quem o cozinha”, descreve o chef lisboeta o primeiro dia de viagem rumo ao segundo jantar Matéria, o fio condutor do trabalho que tem vindo a fazer no Feitoria desde Outubro de 2016 (para ler aqui) e para os quais convida chefs internacionais. “Depois deste processo estar implementado, pensei que tivesse chegado a hora de o internacionalizar, porque se queres que haja alguém que conheça o nosso país, tens de internacionalizar a marca Portugal, mas de uma forma genuína”, continua.

Para este segundo jantar, João Rodrigues desafiou o francês Florent Ladeyn, chef do Auberge du Vert Mont (1 estrela Michelin), em Boeschèpe, em Lille, França, a descobrir a diversidade da região Oeste através de um roteiro gastronómico centrado no mar, na terra e nas pessoas, em particular, um chef e produtores locais. “É uma forma de os chefs que cá estiveram, estão e estarão voltem para os seus países e digam ‘agora sei o que é Portugal’, sem ser Lisboa, as ruas de Lisboa”, justifica. Para além disso, estes roteiros servem para preservar as várias cozinhas que cabem à boa mesa portuguesa, “não deixar que a nossa cultura, as nossas tradições, as nossas raízes, as nossas origens caiam em esquecimento. Por isso, e independentemente do que disserem, este trabalho tem de ser feito e tem de ser internacionalizado”.

André Cruz, o braço direito de João Rodrigues, com a dourada do dia, peixe que protagonizou o prato de Florent Ladeyn, para o jantar Matéria do dia seguinte

A fasquia sobe, porém, porque o desafio é os chefs além fronteiras cozinharem e criarem novos pratos com produtos de uma região sem antes os ter conhecido. “Traz-nos, enquanto equipa [do Feitoria] e comensais, uma abordagem nova em relação ao que é extremamente cultural e que tem barreiras, mas que eles vão-nos ajudar a quebrar”, como se de uma formação se tratasse e, em simultâneo, de uma partilha do que há por cá: o produto, a matéria.

Lagosta de Peniche suada, o marisco escolhido pelo chef anfitrião do Feitoria

No entanto, já João Rodrigues tinha o alinhamento dos pratos, sendo os da sua autoria – e da equipa do Feitoria – a lagosta de Peniche suada, que brilhou no prato, e a dupla outonal de boletos e bolotas.

Portugal, “o novo eldorado da comida”

João Rodrigues e Florent Ladeyn na manhã soalheira, na Quinta do Archino

Porquê Florent Ladeyn? João Rodrigues justifica a sua presença pela abertura que denota ter face a novos desafios ou não fosse a nossa cozinha convertida em regionalismos gastronómicos, cada um com um terroir e uma identidade próprias. Além disso, “tem disponibilidade para absorver esta simplicidade que, ao mesmo tempo, é muito complexa, porque é a cultura do povo e isso, para mim, é muito importante”.

O efeito surpresa por parte do chef francês é notório: “Foi de loucos! Nunca imaginei isto! Ver peixe e marisco é uma coisa, mas vê-los vivos foi fascinante! Não esperava conhecer um terroir tão gracioso nem produtos com uma qualidade tão boa. Vocês têm de tudo aqui: peixe do rio e peixe de mar, bom vinho… É estranho nunca ter ouvido falar sobre o terroir português. Parece o novo eldorado da comida e é exactamente num sítio como este que gostaria de implementar o meu conceito de cozinha.”

A dourada, a couve portuguesa e o berbigão compuseram o prato assinado pelo chef francês

Entendida a matéria, o chef francês acrescentou valor à cozinha tradicional na noite de 16 de Novembro, no Feitoria, com quatro pratos: a batata souflée e queijo da Serra; a dourada envolta em couve portuguesa e berbigão; a perdiz vermelha com cogumelos selvagens e murta; o merengue com manteiga de ovelha e mini-tomate negro; e a última sobremesa composta por marmelo e pêra.

O chef, os produtores e a região deles

João Simões, o chef que representou a região Oeste

Em representação da região Oeste, João Simões, natural de Estribeiro, Alenquer, fez questão em mostrar a Florent Ladeyn um dos petiscos mais apreciados pelos locais: o courato. Segundo a explicação do chef alenquerense, o courato come-se a qualquer hora do dia com pão.

Os couratos pelas mãos do chef português convidado

“Antigamente, eram temperados com alho, colorau e muito picante. Eram colocados na chapa ou na grelha, onde eram estendidos, para ficarem com a máxima crocância possível”, esclarece. Porém, João Simões resolveu inverter a essência do ritual, ou seja, “em vez de colocar o courato dentro do pão vou meter o pão dentro do courato” – a repetir, por favor. Foi o que fez no jantar no jantar Matéria, para o qual também concebeu uma saborosa canja de codorniz, “porque é um produto que, nesta região, principalmente na zona de Alenquer, antigamente quase todos os restaurantes tinham, mas que se deixou de utilizar com tanta regularidade. Havia excursões provenientes de Lisboa para vir ao Costinha, um restaurante na Abrigada, para as pessoas virem comer codornizes”, conta.

Com o intuito de preservar esta tradição, João Simões continua a mostrar quão importante é manter a codorniz no prato durante a época a que lhe diz respeito, iniciativa que mantém desde que regressou à região, “para que volte a ser uma prato típico daqui”. Para o referido jantar, a ideia foi “pegar neste produto e aproveitá-lo de cima a baixo”.

Miguel Neiva Correia, o mentor do projecto Hortelão do Oeste

Já fora da cozinha, ou melhor, na horta, está Miguel Neiva Correia, o mentor do Hortelão do Oeste, projecto-piloto de índole familiar iniciado em 2016. “Do primeiro ano para agora crescemos 20 vezes” e de um terreno com 0,4 hectares – onde “o tomate é o nosso cartão de visita” – acresce um outro contíguo a este, ambos na aldeia de Barbas, no concelho de Alenquer, e ainda outro pedaço de terra na aldeia de Runa, no concelho de Torres Vedras.

Rui Neiva Correia, um entendido na matéria de míscaros

Além de Miguel Neiva Correia, o pai, Rui Neiva Correia – além de um profundo conhecedor de míscaros –, dá apoio na área financeira e logística, e os irmãos, Diogo, técnico de gestão agrícola, Rita, designer de moda, e Inês complementam essa mesma ajuda na gestão do trabalho de campo, nas redes sociais e encomendas e, por fim, na distribuição, respectivamente. A somar a todas estas valências, Inês Neiva Correia está a desenvolver o projecto de transformados, “ainda em fase de teste”, afirma Miguel Neiva Correia.

Na terra são semeados e plantados produtos hortícolas das mais variadas espécies e cores: couves, beringelas, alfaces, pimentos, picantes, abóboras, cenouras. “Apesar de sermos agricultores de profissão, somos coleccionadores de paixão. Nunca ficamos satisfeitos”, confessa o mentor do projecto, que está a programar as sementeiras e o plantio para Janeiro, de modo a vir a ter capacidade de resposta mediante os pedidos dos chefs, com conhecimento de causa, digamos, pois trocou os tachos e as panelas pelo seu mais novo trabalho. “Uma mais-valia para este negócio, um nicho de mercado que tem de ser trabalhado”, trabalho esse que tem dado frutos, uma vez que “esta região é o pulmão hortícola do país”, onde está localizada também a Quinta do Archino, propriedade da família há cerca de 600 anos, onde a colheita de míscaros rendeu mais de uma mão cheia de produto.

Na adega do Vale da Capucha, em Torres Vedras

Findo o dia, ainda houve tempo para visitar o produtor de vinho local, desta vez com o apoio do escanção e chefe de sala do Feitoria: André Figuinha. Chama-se Vale da Capucha, está localizado no Carvalhal, Torres Vedras, a dez quilómetros da costa, e é uma empresa familiar datada de 1858 que vai na quinta geração, com Pedro Marques, o enólogo. Em 2016, com a restruturação profunda na vitivinicultura implementada em solos onde se verifica a existência de fósseis – símbolo da identidade e da marca de um dos vinhos desta adega – e cuja influência marítima é evidente em algumas das suas referências vínicas.

Em suma, há mar e há terra. Uma roda-viva de produtos e produtores em redor de mais um jantar cuja origem advém de um conceito assinado por João Rodrigues e inspirado em regiões e terroirs diferentes de Portugal, o mote para desafiar e cruzar conhecimento, bem como experiências, entre chefs internacionais e locais. E uma forma subtil, e desde sempre agradável, de conquistar o coração pelo estômago de quem vem de fora para conhecer o que há para descobrir por este país adentro.

+ Restaurante Feitoria
© Fotografia: João Pedro Rato / © Filme: Fabrice Demoulin e Restaurante Feitoria

Já recebe a Mutante por e-mail? Subscreva aqui.